terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Travestis do século XVI - Histórias de travestis ancestrais em Portugal e no Brasil

Por Paco Llistó Colaboração: Luiz Mott*

O travestismo é muito mais antigo do que imaginamos. Há registros da existência de travestis em Portugal no século XVI. A maioria se concentrava na Ribeira das Naus, em Lisboa e alguns eram condenados ao açoite e ao degredo no Brasil. Isabel Drumond Braga, historiadora portuguesa, escreveu em seu artigo Ser Travesti em Portugal no século XVI, que os travestis de Lisboa se identificavam "pela maneira extravagante como se apresentavam, pelo uso exagerado da cor, os elementos femininos nas vestes, as maquiagens, o recurso à depilação e o uso de cabelos longos com madeixas e franjas". Também há registro de travestismo em reinos como Guiné, Bernim, Congo e Angola, por exemplo. Nesses locais, os colonizadores exterminaram violentamente dezenas de travestis.
No Brasil, foi o professor e historiador Luiz Mott que reuniu as principais informações sobre os travestis ancestrais. Em seu artigo "Pagode Português: A Subcultura gay em Portugal nos tempos da Inquisição", Mott argumenta que o travestismo em Portugal era "um fenômeno predominantemente alienígena, um traço cultural africano". O historiador revela que brancos e mestiços não só deixavam de se travestir (ou praticar o cross-dressing), mas também tentavam "destruir simbolicamente o sexo fisiológico", aniquilando-o.
Mott cita o exemplo da travesti Vitória (ou Antonio), escravo natural de Bernim, que viveu na Ribeira em 1556 e disputava espaço e clientela com prostitutas do local. O escravo chegou a sofrer um processo inquisitorial e foi denunciado pelas suas "colegas" que reclamavam da concorrência. Segundo relato publicado em artigo de Mott, "de dia, Antonio usava bizarra e ambígua indumentária: trazia um pano muito alvo na cabeça, com um chapéu em cima, e um açafate (cestinho de vime) em riba do chapéu, e um gibão branco atacado todo por diante, e um avental de burel cingido aberto à frente. E perguntando na rua: Por que chama os homens se és negro? Ele disse: Sou negra e não negro! E mostrava os peitos...".
Vitória morava em Ponta Delgada, nas Ilhas, e depois se mudou para Lisboa. Um homem teria tentado identificar seu sexo, mas "não teve êxito, pois ele apertava as pernas e não deixou que o apalpasse". A travesti nunca se apresentava como Antonio e "corria às pedradas" quando o chamavam de negro. Ainda nas Ilhas, tinha duas personalidades: de dia usava roupas masculinas e à noite vestia-se como mulher. Vitória chegou a ser presa e descobriram que "era homem e trazia sua natura amarrada com uma fita vermelha por entre as pernas, por trás, a qual todos viram, e o trouxeram amarrado com as mãos para trás, com a mesma fita, à casa de seu senhor, que no momento estava na missa...". Um intérprete foi necessário para que a travesti conseguisse se explicar para os Inquisidores. Vitória confirmou que era mesmo mulher e que "tinha um buraco na ilha (sic)". Os padres perguntaram-lhe: "O buraco que tem foi feito por ele ou lhe fizeram por causa de alguma inferioridade ou se nasceu com ele?". Disse que nascera com os ditos buracos e que havia muitos na sua terra que tinham os mesmos buracos e nasceram com eles. "Os inquisidores não engoliram a balela, e ordenaram aos oficiais dos cárceres que vistoriassem o negro 'para ver se era homem, ou mulher ou mofrodito'. Amarrado com as mãos nas costas, com as pernas abertas numa escada, para melhor ser visto, deram o laudo pericial: "Damos fé que o dito Antonio tem natura de homem, sem ter buraco algum nem modo algum de natura de mulher" (trecho retirado do artigo de Mott, "Pagode Português: a Subcultura gay em Portugal nos tempos da Inquisição"). Vitória foi, então, condenada ao degredo perpétuo.
Outro escravo, Sebastião, 23 anos, foi preso no ano seguinte. Segundo relatos, ele usava "um pano em redor de si", como uma saia, "parecendo mais mulher do que homem". Curioso é o caso do cirurgião Felipe Correa, preso em 1553, que tentava conquistar seus parceiros "mostrando o cirurgião um pedaço de seu peito tomando-o com a mão e dizendo que também tinha peito como Francisca...", segundo artigo de Mott. O cinqüentenário cirurgião contava aos homens que "era mulher e tinha natura de mulher ". Um de seus cúmplices teria declarado: "meti o membro entre as coxas do cirurgião e não achei nem órgão de mulher nem de homem: era tudo raso". Mott observou que o cirurgião talvez tivesse "amarrado o pênis e testículos com um cordão, escondendo-os no meio das coxas", o que é praticado por muitas travestis hoje em dia. Correa saiu do degredo e voltou para Portugal anos mais tarde.
Em pesquisas de Luiz Mott, também observam-se casos de pseudo-hermafroditismo. Em documento do Santo Ofício, o caso do padre Pedro Furtado, 46 anos, preso em Coimbra, já no século XVII (1698), chama a atenção. Sua "vida homoerótica" só se tornou conhecida quando um de seus parceiros contou a seguinte história: "Disse o Pe. Furtado que era mulher e filha de um fidalgo, o Conde de Avintes, que estudara em Paris em hábitos de homem e por persuasão de uma mulher e ensino que para isto lhe deu, se vestia em hábito clerical, fizera a coroa e com medicamentos fizera crescer a barba e secar os peitos e engrossar a voz. Disse mais que por duas vezes parira e que seu nome era D.Paula de Lisboa. E que se quisesse experimentar a verdade, lhe pusesse a mão nas suas partes inferiores. E com efeito, levando a mão a elas, achei ter instrumento de mulher sem forma alguma de instrumento de homem...".
Posteriormente, dois médicos da Inquisição examinaram o padre e chegaram à seguinte conclusão: "O réu tem um membro viril de homem, o vaso traseiro estava no seu lugar e na proporção comum da natureza, sem sinal ou demonstração alguma de que era mulher ou hermafrodita". O padre usava a estratégia para conseguir seus parceiros e "satisfazer sua fantasia sexual", como observou Mott, e enganava os "marinheiros de primeira viagem" ao esconder sua genitália com uma funda de couro.
Travesti nacionalHá relatos de travestismo também no Brasil. Luiz Mott publicou em seu livro Primeira Visitação e na Revista de Antropologia da USP, o caso do escravo negro Francisco Manicongo, sapateiro e morador de Salvador. O relato abaixo data de 1591.
"Denunciou Matias Moreira, cristão-velho de Lisboa que Francisco Manicongo "tem fama entre os negros desta cidade que é somítigo e depois de ouvir esta fama, viu ele com um pano cingido, assim como na sua terra do Congo trazem os somítigos. Mas disse que ele denunciante sabe que em Angola e Congo, nas quais terras tem andado muito tempo e tem muita experiência delas, é costume entre os negros gentios trazerem um pano cingido com as pontas por diante que lhe fica fazendo uma abertura diante, os negros somítigos que no pecado nefando servem de mulheres pacientes, aos quais chamam na língua de Angola e Congo quimbanda, que quer dizer somítigos pacientes. E tendo o lisboeta visto ao cativo Manicongo trazer a veste dos quimbandas "logo o repreendeu disso e o dito Francisco lhe respondeu que ele não usasse de tal e o repreendeu também porque não trazia o vestido de homem que lhe dava seu senhor, dizendo-lhe que em ele não querer trazer o vestido de homem mostrava ser somítigo, pois também trazia o dito pano do dito modo. E depois o tornou ainda duas ou três vezes a ver nesta cidade com o dito pano cingido e o tornou a responder, e já agora anda vestido em vestido de homem".
*Luiz Mott é Professor Titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e foi o fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB).

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