quarta-feira, 1 de abril de 2009

OS TRAVESTIS SAGRADOS DO SULAWESI

A divisão dos seres humanos em homens e mulheres não é a única existente no mundo. Para algumas sociedades, os gêneros não se definem com tanta simplicidade e nitidez. É o que acontece em Sulawesi, uma das ilhas indonésias, onde vive um povo que admite quatro gêneros diferentes, além de um quinto, formado por sacerdotes que são simultaneamente homens e mulheres. Por se localizar atrás das lhas de Sumatra e Java, Sulawesi não foi atingida pelo desastre do tsunami de 2005.
Existem nuances entre o branco e o preto, ensina a filosofia. Da mesma forma, a dicotomia entre os sexos cai por terra quando se conhece a cultura dos bugis, que vivem no sul de Sulawesi. Nessa ilha, também conhecida como Célebes, uma das tantas que compõem a Indonésia, existe algo além dos gêneros masculino e feminino.
Na cultura dos bugis, há quatro gêneros: os oroane, que são os ho­mens masculinos; as makunmi, ou mulheres femininas; as calalai, mu­lheres masculinas; e os calabai, homens femininos. Além desses, exis­te ainda um quinto "paragênero" ou identidade, os bissu, sacerdotes com características masculinas e femininas. Todos convivem em harmonia e cada um exerce seu papel na sociedade, que não faz ne­nhum tipo de segregação ou distinção. Bissu, calalai e calabai sim­plesmente desafiam nossas noções de que os seres humanos se divi­dem em dois gêneros e de que é a anatomia que determina um des­ses dois sexos.
Calalai, na verdade, significa "falso homem", assim como calabai quer dizer "falsa mulher". As calalai são mulheres do ponto de vista anatômico, mas exercem inúmeros papéis e funções que se esperam de um homem, como ferreiro ou amolador de punhais (ou kris, como são conhecidos por lá); usam trajes de homem e amarram seus sarongues à moda masculina. Isto é, trabalham e se vestem como ho­mens, fumam e andam sozinhas durante a noite, coisas que não são indicadas para mulheres. Mas são mulheres e não querem ser vistas como homens: - são calalai.
Bissu, entre história e lenda
Já os calabai são homens do ponto de vista anatômico, mas, em mui­tos aspectos, aderem a uma certa feminilidade. Eles, porém, não se consideram mulheres, nem querem sê-lo, da mesma forma que não pensam em recriar seus corpos através de cirurgia. Também não acei­tam as restrições impostas às mulheres e estabeleceram para si mes­mos algumas normas dentro da sociedade dos bugis. Assim, quando se marca um casamento, o calabai será responsável pela organização de toda a festa, da decoração da tenda e da comida até a arrumação das cadeiras dos noivos e a maquiagem de todos.
Para explicar sua existência, os bugis narram uma história em que os bissu desempenham o principal papel. Lá nos céus, os deuses resolveram dar vida a nosso solitário planeta e mandaram para cá uma de suas mais promissoras divindades, o Batara Guru. Mas, como ele não era bom para organizar as coisas, os deuses destacaram dois bissu para acompanhá-lo. Ao chegar aqui na Terra, os bissu se encarregaram de criar a linguagem, a cultura, os costumes e tudo o que um mundo necessita para começar e crescer.
Histórias como essa fazem parte da rica tradição oral da região, em­bora outras narrativas também tenham sido registradas, desde o sé­culo 16, em folhas de palmeira. Em todas, destaca-se a evidente importância dos bissu, garantindo-lhes uma posição reverenciada até hoje.
Mas, afinal, quem são os bissu? A sua sexualidade é controvertida. Para alguns, fazem votos de castidade. Para outros, são encarregados de iniciar os homens em sua virilidade. Quase sempre são descritos como travestis, mas isso é um engano. Eles se vestem para si mes­mos, e não para o sexo oposto, e usam roupas que são exclusivas para bissu, combinando peças usadas pelos dois gêneros e que real­çam suas características masculinas e femininas. No dia-a-dia, os bissu têm permissão para entrar nas áreas das cidades e das casas reser­vadas às mulheres, da mesma forma que freqüentam tudo o que é exclusivo dos homens.
O bissu é uma mistura de afetação e dignidade. Acredita-se que eles sejam seres intersexuais, cujos corpos englobam elementos de ambos os sexos. O bissu pode carregar um punhal de macho e usar flores no cabelo, como faria uma mulher.
Mas, além de combinar atributos masculinos e femininos, ele deve também combinar elementos humanos com espirituais. É funda­mental que tenha bons contatos com o mundo do espírito, de maneira que possa contatar os deuses.
Para ser possuído pelos espíritos, porém, ele precisa ter sua porção humana. Considera-se que os bissu são capazes de fazer a ponte en­tre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, exatamente porque reconciliaram em si o homem e a mulher, ficando além dessa divisão. Em sua essência, portanto, são machos/fêmeas, deuses/mortais. São seres que podem ser possuídos por espíritos para distribuir bênçãos pelos mais diversos motivos, como o plantio de arroz, a colheita, os funerais, ou para consagrar um casamento.
Islamização e sincretismo
Os bugis conseguiram sincretizar as crenças pré-islâmicas com o islamismo dominante na região. Embora essa religião proíba o comportamento transexual, os bissu abençoam até mesmo os islâmicos que partem para uma viagem de peregrinação a Meca. Nos tempos pré-islâmicos, os bugis veneravam um deus chamado PaTotoe. Hoje, há bugis que acreditam que Alá seja PaTotoe com um nome diferente. Esse sincretismo vai além: antes de invocar as divindades para serem possuídos, os bissu pedem as bênçãos e os conselhos de Alá. De suas velhas práticas, eles aboliram apenas uma, a de andar sobre o fogo, por ser contrária ao Islã.
Esse sincretismo não foi atingido pacificamente, tendo sido alcançado depois de muita luta. Para se compreender a situação atual, é preciso conhecer um pouco da história da região.
Quando o Islã chegou ao sul de Sulawesi, no século 17, os bissu se adaptaram bem. Até que em 1950, cinco anos depois da independência da Indonésia, a facção islâmica que dominou o país se propôs a "purificar a região dos desvios pagãos". Os objetos rituais fo­ram então queimados ou atirados ao mar. Os bissu que não conse­guiram se esconder na mata foram decapitados e suas cabeças, presas pelas longas cabeleiras, foram exibidas pelos vilarejos para deixar claro que os rituais não mais seriam permitidos.
Os sobreviventes dos massacres foram escondidos por camponeses que temiam que suas plantações, caso não fossem abençoadas, não produzissem boa colheita. Com os anos e certa democratização da in­donésia, os bissu puderam sair da clandestinidade, embora parte da população ainda os encarasse como feiticeiros perigosos e as crianças fossem ensinadas a nunca cruzar os olhos com os de um bissu, sob pena de receber uma maldição que poderia durar 40 dias e 40 noites.
Como alguém se transforma em bissu? A crença é que se nasce com propensão a ser bissu. As chances aumentam se o bebê nasce com uma genitália ambígua, embora isso não garanta que alguém vá se tornar um bissu. A ambigüidade não precisa ser visível, pois se um macho padrão se torna bissu é porque se acredita que ele tenha uma mulher em seu interior.
Mais ou menos por volta dos 12 anos, se uma criança demonstra ter muita ligação com o mundo espiritual, ela é preparada para ser um bissu. No passado essa criança se tornaria aprendiz na corte real. Hoje em dia ela se torna aprendiz de um único bissu. Depois de muitos anos de treinamento, o aprendiz será então submetido a uma série de testes para poder ser um bissu. Dentre outros, terá de ficar deitado numa jangada de bambu, no meio de um lago, por três dias e três noites, sem comer, sem beber e se mexer. Se sobreviver e acordar do transe, expressando-se com fluência na linguagem sagrada dos bissu, o aprendiz será então aceito como um deles.
Ritual do punhal sagrado
Uma vez tornado bissu, estará pronto para dar bênçãos. Para tanto, deve ser possuído por uma divindade apropriada. Só os bissu podem ser possuídos, pois apenas eles são a mistura de mortais com deuses, do feminino com o masculino.
Para acordar as divindades, os bissu primeiramente cumprem um ritual envolvendo música e cantos. Oferecem comidas rituais, que in­cluem arroz cozido e tingido em diferentes cores, ovos, galinhas, ga­los, cigarros, bananas, cocos e outras oferendas.
Uma vez acordados os deuses, seleciona-se, entre os melhores, aquele que está apto a dar a bênção pedida. Essa divindade deve então descer e possuir o bissu, que entra então em transe; suas manei­ras se alteram, tornando-se irritadiço e agressivo. Essa mudança de comportamento é insuficiente para convencer que ele está possuído. Tanto as pessoas reunidas em seu redor como as que requisitaram bênçãos e conselhos exigem uma prova de possessão.
Em resposta a esse desafio, o bissu deve cumprir o ma'girí, ou ritual de auto-apunhalamento, em que ele usa o kris, um punhal sagrado guardado há muitas gerações de bissu, para tentar cortar sua pele. Ele deve chegar a ponto de se deitar no chão com o punhal pressionando sua garganta, podendo também apontá-lo para as palmas das mãos ou as têmporas. Se o punhal não penetrar na pele, o bissu é considerado impenetrável, provando assim que está possuído por um espírito poderoso. Portanto, o bissu hospedeiro e a divindade que o possuiu estão prontos para abençoar.
Caso o punhal penetre, diz-se que o bissu está tomado por um espírito fraco ou por nenhum espírito, ficando impedido de dar bênçãos.
Acreditemos ou não nos rituais dos bissu, uma coisa é certa: essa ilha perdida nos confins da Ásia desafia nossas convicções de que os seres humanos devem se conformar com dois gêneros, além de nos provar que nem sempre a anatomia determina os sexos. Sulawesi nos ensina que às vezes as aparências não mostram tudo.

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